Penso na casa que habitei
Penso nos seus recortes irregulares, nas suas portas e janelas, calhas, cisterna, jardim
Penso no sótão sombrio e repleto de ratos
Penso nos muros brancos, depois cobertos por hera, que foram paulatinamente construídos
Penso nas perambulações pelos quartos, quando se encontravam vazios e acessíveis aos meus caprichos
Penso em como manipulava as revistas pornográficas do meu irmão
Penso em como vestia, para logo após despir, as roupas e acessórios guardados nos armários dos meus pais
Penso em como tudo isso não significava para mim o acesso a uma intimidade, mas a teatralização de gestos que se davam nesses espaços, por vezes, impenetráveis ao meu olhar
Penso em como os espaços externos e internos da casa se confundiam: ao mesmo tempo íntimos e visíveis, abertos e jamais inteiramente acessíveis
Penso em outras casas, em muitas outras: nas dos amigos, dos parentes, nas que visitei
Penso nas vezes em que estive só com M. em sua casa e como só lá nos permitimos uma proximidade física desconcertante
Penso no meu tio que construiu cada uma das casas em que morou
Penso em como, logo após a casa pronta, o seu olhar se tornava vago, sendo o prenúncio de um abandono
Penso na minha inabilidade para constituir um lar, uma morada
Penso na casa de vidro sonhada pelos contemporâneos de Benjamin
Penso nos penetráveis do Helio
E por eles penso que, talvez, a casa se engendre como imagem: da separação entre o olhar e a luz, lá onde a matéria impõe um obstáculo à visão, ao mesmo tempo em que se mantém aberta a luminosidade
Penso, por isso, que, talvez, a casa seja, antes de tudo, um grande vitral: um corpo poroso e, ao mesmo tempo, opaco, uma abertura e um fechamento, uma névoa de cores, uma miragem
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