Revista Virtual Astro-Lábio de Arte & Literaturas 2ª edição_
Casa e suas adjacências – jardim, muro, mobiliário, caracol, tapete, cozinha, etc.

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DIÁRIO POLIFÔNICO
CASA EM OBRAS

Morro Azul


O terreno era curvo e repleto de inclinações. O primeiro que me vem à cabeça é o pé de graviola. Graviola não, acerola. As frutas enormes juntavam passarinhos ao redor do pé. Me lembro também do milharal perto da quinta, da vertigem de montar pela primeira vez, e depois o mato e as framboesas pelo caminho.

Uma vez um raio caiu dentro da casa. E digo “da casa” e não “de casa” porque a casa não era minha. Vi do corredor. Caiu no banheiro e ela dentro. Ela no banho e de repente um clarão. Parece mentira, mas o banheiro tinha justo o espaço do raio e da criança – um do lado do outro entre os ladrilhos brancos. E foi tão rápido e barulhento que ela saiu surda e cega – nós ali olhando sem dizer nada, a casa vazia. Ela veio do banheiro sonâmbula, foi pra cama, se cobriu dos pés à cabeça e ficou lá no casulo. No dia seguinte já não se lembrava. No dia seguinte foi ela que nos tirou dali.

Era uma menina de sardas e cabelos encaracolados. Família da Tijuca, ele do Leme, eu da Gávea. Me lembro uma vez apostamos quem ia conseguir dar um beijo nela primeiro. De repente era de noite, eu num dos quartos lia a história do Saci pra outra criança quando a porta : posso entrar? O arrepio foi ver ela vir ouvir a história do meu lado. Ela já tinha peitos e eu estava quase encostando. Mas logo no final, quando a criança já dormia, ele entrou dizendo que tínhamos que ir, que ele tinha visto um fogo voando no meio do jardim. Eu sabia que não veríamos nada além de vagalumes, mas me levantei mesmo assim, talvez até aliviado enquanto ele sorria esperando com a mão na maçaneta.


***


E na volta o resto do dia nos fundos, diante da porta brincando com as antenas, ainda que o medo das Vermelhas. 1956. Era quinta-feira de lava-pés quando o príncipe disparou no seu irmão caçula. Detrás da casa a pistola era presente do Franco – o tiro entre as sobrancelhas não se sabe se acidente. O morro apinhado de formigueiros de onde a trilha até o chão da área. As Marias Pretinhas (ou Vagabundas) tinham desenhado uma linha invisível com várias camadas de feromônio – versão obreira sem asa do Caminho de Santiago. E com pinças e fósforos raptávamos duas, deitávamos antenas fora, e emborcávamos um pote de vidro sobre elas. Encerradas no Coliseu não se reconheciam. Sem as antenas não podiam se cheirar, e se tocavam sem se tocar, se estranhavam, e começavam a luta. Cortavam as patas uma da outra, uma por uma, às vezes se suspendiam no ar, e ganhava a que tivesse mais membros no final – a não ser que surgisse uma tão forte que logo zás! cortava a cabeça da outra. Depois escurecia e os restos eram classificados. De um lado as cabeças, do outro corpos, patas e finalmente antenas, tudo amontoado em cemitérios de formigas e ao lado o pote vazio que refletia agora uma luz artificial.


***


Cavo ainda mais fundo e surge algo embaçado. Uma casa de pau-a-pique no meio da estrada mais acima, um morro, uma velha senhora falando kimbundu, uma dinda esclerosada que já ninguém prestava atenção ninguém tinha –, aquela imagem queimando no cachimbo. Ela sentada olhando de cima pro nada – nada?, falando lé com cré – nada de nada?, como é que será que morreu – será que morreu?

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