Meu quarto não é uma cama, nem aqui, nem em Paris, nem em Trouville. É uma certa janela, uma certa mesa, a intimidade com a tinta preta, marcas de tinta preta impossíveis de achar em outro lugar, é uma certa cadeira. E certos hábitos que reencontro sempre, aonde quer que eu vá ou esteja, mesmo nos lugares em que não escrevo, como quartos de hotel, por exemplo, o hábito de sempre ter uísque na minha mala, para o caso de insônias ou súbitos desesperos.
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Dá para caminhar de uma ponta a outra dentro desta casa. Sim. Dá para ir e voltar também. E depois há o parque. Lá, existem árvores milenares e árvores ainda jovens. Há lariços, e macieiras, uma nogueira, ameixeiras e uma cerejeira. O pé de abricó morreu. Na frente do meu quarto, há aquela roseira formidável de L’Homme Atlantique. Um salgueiro. Há também cerejeiras-do-japão, palmas-de-santa-rita. E embaixo de uma janela da sala de música há uma camélia, que Dionys Mascolo plantou para mim.
Primeiro troquei a mobília da casa, depois mandei pintar as paredes de novo. E então, talvez dois anos depois, minha vida com a casa teve início.
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Quando eu ia até o fim da casa, lá do outro lado, na direção da ‘casa pequena’, tinha medo do espaço como de uma emboscada. Posso dizer que tinha medo todas as noites. No entanto jamais fiz o menor gesto para que alguém viesse morar aqui. Às vezes, de noite, eu saía já tarde. Adorava as caminhadas, com as pessoas da aldeia, os amigos, os habitantes de Neauphle. Bebíamos. Conversávamos bastante. Íamos a uma espécie de cafeteria grande como uma aldeia de muitos hectares.
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Esse perder-se de si no interior da casa não é voluntário, em absoluto. Eu não dizia: ‘Estou fechada aqui todos os dias do ano.’ Eu não estava, isso seria dizer algo falso. Ia dar voltas, ia ao café. Mas ao mesmo tempo estava aqui. A aldeia e a casa são semelhantes. E a mesa diante do tanque. E a tinta preta. E o papel branco é parecido. Com os livros, não, de repente, com eles nunca é parecido.
Antes de mim, ninguém havia escrito nesta casa. Perguntei ao administrador da municipalidade, aos vizinhos, aos comerciantes. Não. Nunca. Telefonei diversas vezes para Versailles a fim de tentar saber o nome das pessoas que tinham morado nesta casa. Na série dos nomes dos moradores e seus prenomes e sua profissão não havia um só escritor. Ora, todos esses nomes podiam ser nomes de escritores. Todos. Mas não eram. Em volta, havia chácaras de várias famílias. O que encontrei na terra foram as lixeiras dos alemães. A casa foi de fato ocupada por oficiais alemães. Suas lixeiras eram buracos, buracos na terra. Havia muitas conchas de ostras, caixas vazias de produtos caros, sobretudo patê de fois gras, caviar. Exceto cacos de louça, sem dúvida nenhuma louça de Sèvres, os desenhos estavam intactos. E o azul era o azul inocente dos olhos de algumas de nossas crianças.
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Na casa, era no primeiro andar que eu escrevia, não escrevia embaixo. Depois, ao contrário, escrevi no grande cômodo central no térreo para estar menos só, talvez, não sei mais, e também para ver o parque.
Existe isso no livro: a solidão nele é a solidão do mundo inteiro. Está em toda parte. Invadiu tudo. Sempre creio nesta invasão. Como todos. A solidão é aquilo sem o que nada fazemos. Aquilo sem o que nada pode ser visto. É uma forma de pensar, de raciocinar, mas apenas com o pensamento cotidiano. Isso também existe na função de escrever e sobretudo, talvez, dizer a si mesmo que não é preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a qualquer dia.
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Escrevia todas as manhãs. Mas sem horário certo. Nunca. Exceto quanto à cozinha. Sabia quando precisava ir porque a panela estava fervendo ou para que a comida não queimasse. Quanto aos livros, também era assim. Juro. Tudo, eu juro. Nunca menti em um livro. Nem na vida. Exceto para os homens. Nunca.
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Viver assim, como eu digo que vivia, nessa solidão, por um longo tempo, cria riscos que se precisa correr. É inevitável. Desde o momento em que o ser humano se vê sozinho, ele oscila para a demência. Acredito nisso: acredito que uma pessoa entregue a si mesma já se acha acometida de loucura, porque não há nada que barre seu caminho quando ocorre um delírio pessoal.
Nunca se está só. Nunca se está só, fisicamente. Em parte alguma. Sempre se está em algum lugar. Ouvem-se barulhos na cozinha, na televisão, ou no rádio, nos apartamentos vizinhos, e no prédio inteiro. Sobretudo quando nunca se precisou do silêncio como eu sempre fiz.
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Dormi bastante naquele aposento que se converteu em sala. Por muito tempo acreditei que um quarto de dormir fosse uma coisa convencional. Foi quando trabalhei ali que um quarto de dormir se tornou algo indispensável como os demais quartos, mesmo aqueles vazios, dos outros andares. O espelho da sala era dos proprietários que me precederam. Deixaram-no para mim. O piano, eu o comprei logo depois de comprar a casa, quase pelo mesmo preço.
Ao lado da casa, cem anos atrás, havia uma trilha para o gado vir beber no tanque. Agora o tanque se encontra dentro do meu parque. E não existe mais gado. Na aldeia, não há mais leite fresco de manhã. Há cem anos.
Na verdade, é quando se roda um filme aqui que a casa aparece outra casa, aquela que existiu, certa época, para gente que viveu antes de nós. Na solidão, mostra imediatamente sua graça, como uma outra casa que pertenceria ainda a outras pessoas. Como se algo tão monstruoso como a perda da posse desta casa pudesse ser visto.
O lugar onde se colocam as frutas, os legumes, a manteiga salgada, para manter tudo fresco, lá dentro... Havia um lugar assim... escuro e frio, acho que era assim... escuro e frio... acho que era assim uma despensa, é isso mesmo. Esta é a palavra. Para pôr a salvo as provisões de guerra.
As primeiras plantas que nasceram aqui são as que estão no parapeito das janelas da entrada. É o gerânio-rosa vindo do sul da Espanha. Aromático como o Oriente.
Nesta casa nunca se jogam as flores fora. É um hábito, não uma regra. Nunca, mesmo quando estão mortas, elas sempre ficam onde estão. Existem pétalas de rosas que estão no mesmo lugar há quarenta anos, na mesma jarra. Estão ainda bem rosadas. Secas e Rosas.
O problema, o ano todo, é o crepúsculo. Tanto no verão quanto no inverno.
Há o primeiro crepúsculo, aquele do verão, e não é preciso iluminar o interior da casa.
Depois há o verdadeiro, o crepúsculo do inverno. Às vezes, fecho os postigos das janelas para não ver isso. Há também as cadeiras, elas são arrumadas para o verão. É no terraço que se costuma ficar no verão. Ali converso com os amigos que vêm durante o dia. Pra isso, muitas vezes: conversar.
Sempre é triste, mas não trágico, o inverno, a vida, a injustiça. O horror absoluto de uma certa manhã.
É apenas isso, triste. Nem com o tempo dá para se acostumar com isso.
O mais difícil, nesta casa, é o temor pela sorte das árvores. Sempre. E cada vez. Cada vez que há tempestade, e há muitas tempestades por aqui, a gente torce pelas árvores, tem medo do que possa acontecer com elas. Não sei mais seus nomes na ponta da língua.
- fragmentos de escrever, de marguerite duras.
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