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News from home, de Chantal Akerman, talvez possa ser pensado como uma espécie de filme epistolar. É o que nos parece propor, à primeira vista, o conjunto de cartas maternas com que trabalhou a cineasta em 1976. Às quais, como já se disse muitas vezes, ela parece responder com o filme. No entanto, como já observou Ivone Margulies, em estudo sobre Akerman, há algo meio perverso nessa troca, pois, ao emprestar a sua voz às queixas e saudades maternas, essa repetição – com a voz da cineasta – do texto da mãe, recortado, todavia, pela filha, faz dele propriedade agora não mais de sua remetente, mas sim da destinatária.
Se o filme tem na ausência, no afastamento, motivos recorrentes, e constrói sua estrutura narrativa com base na distância espacial entre as duas interlocutoras, ampliada, de certo modo, pela reiteração - por parte da saudosa escrita materna- de pedidos de fotos e maiores informações a respeito da temporada norte-americana da filha, sobrepõe-se igualmente, à separação entre mãe e filha, a distância entre o universo caseiro, íntimo, de amigos e parentes, que povoam as histórias maternas, e as ruas, locais públicos, imagens impessoais que se sucedem na tela, e que parecem, elas mesmas, registradas quase sempre a certa distância.
A imagem sonora do filme se compõe, ela também, de um jogo de distâncias. De um lado, há uma série de trechos de cartas de uma mãe para uma filha, que se encontra ausente, distante, em outro continente, uma correspondência que é invariavelmente lida em off pela mesma voz feminina (que se sabe ser a da própria cineasta), mensagens epistolares intercaladas, de outro lado, pelos mais diversos ruídos de uma grande cidade. Por meio dessas cartas, somos informados sobre alguns eventos cotidianos das duas vidas – a da mãe, na Bélgica, e a da filha,
O filme parece se engendrar numa tensão entre dois registros distintos. O das cartas, bastantes pessoais, que informam sobre os acontecimentos da vida daquela que as escreveu, assim como também alguns aspectos da vida levada pela sua filha
Além da defasagem entre os registros sonoros e visuais, há também, entre essas imagens, uma diferença temporal. Se as imagens visuais se passam em dois dias, as imagens sonoras implicam uma passagem muito maior de tempo. Isso fica explícito na contagem que a mãe costuma fazer, nas cartas enviadas por ela, dos dias que separam a sua da última carta enviada pela filha (“há três dias que você não escreve” ou “já se passaram dez dias desde que recebi a sua última carta”). Uma defasagem complexificada pelo fato de o sujeito das cartas (a mãe) ser falado pela voz da filha, que parece se apropriar, assim, do texto epistolar não como ouvinte, mas como emissora. O que parece criar um tipo de curto-circuito numa comunicação epistolar que passa a se alimentar da defasagem entre voz e sujeito.
A narrativa epistolar do filme parece se mover, como a locução, num duplo descompasso. O dos registros ou “tons” que diferem nas imagens visuais e sonoras e o dos tempos díspares apresentados pelas cartas e pelas imagens da cidade. Como disse acima, as cartas se acham endereçadas a uma filha (elas sempre começam por “minha querida filha” ou “querida Chantal”) e as imagens visuais funcionam, a rigor, como uma espécie de resposta a essas cartas. Mas, por essas imagens, nós não sabemos nada sobre a autora. O filme parece assim se constituir sem um ponto de vista delimitável. O ponto de vista aí coincide com o das imagens-epistolares dessa filha ausente, sendo a sua não presença o próprio ponto de fuga das imagens visuais e sonoras.
A meu ver, essa não delimitação de um ponto de vista é algo recorrente nos filmes de Akerman. Um exemplo é D`Est, de 1993, fita realizada duas décadas depois de News from Home, na qual a diretora faz uma espécie de retrato da União Soviética. Nela não temos, como seria talvez o esperável, ‘cartões postais’ ou quaisquer componentes que delimitem claramente aspectos típicos ou recorrentes da região. Ao contrário, temos, por exemplo, uma multidão, um pouco dispersa, que olha alguma coisa que nós não podemos ver. Vemos apenas homens e mulheres parados, sem qualquer expressividade que revele o que eles olham. Eles podem estar simplesmente esperando alguma coisa ou de fato vendo algo específico.
Na seqüência seguinte pessoas se acumulam diante da saída de um prédio. Mais uma vez não sabemos o que eles fazem ali, o que aguardam (se é que aguardam alguma coisa), nem a natureza do prédio (se é um local de trabalho, de moradia, de vendas, etc). Mais adiante, vemos crianças que brincam de escorregar na neve e, em seguida, há um travelling de pelo menos 7 minutos no qual se mostram uma calçada coberta de neve e alguns poucos passantes, assim como as luzes de prédios ao fundo. Como disse, não há, em nenhuma dessas imagens, algo que possamos perceber como próprio e único à Rússia. O que vemos são apenas imagens do cotidiano dessa cidade.
As imagens dos filmes de Akerman parecem ter, em parte, caráter aleatório e isto parece estar diretamente associado a certo ‘apagamento’, ou pelo menos, a uma falta de delimitação mais clara sobre o ponto de vista que constitui essas imagens. A câmera parece ser assim muito menos aquilo que capta aspectos específicos do que uma vista não seletiva sobre o que as imagens mostram.
Nesse sentido, podemos pensar em alguns dos comentários de Svetlana Alpers, em A arte de descrever, sobre as pinturas holandesas do século XVII. Por mais que o objeto de análise da autora não seja a imagem cinematográfica, acredito que algumas de suas observações sobre a pintura holandesa seiscentista possam nos ajudar a pensar sobre o aspecto descritivo presente nos filmes de Akerman.
Em seu livro, Alpers comenta que, diferente da concepção de pintura inspirada em Alberti, e que principia “com um observador que está ativamente olhando para os objetos - de preferência figuras humanas – no espaço”, “o olho de Kepler e a imagem de Vermeer são ambos evocados [numa] imagem não-emoldurada do mundo comprimido num pedaço de papel sem nenhum observador prévio para estabelecer uma posição ou escala humana que se possa introduzir na obra” (Alpers, 1999, p.427).
Sobre o quadro As bodas de Arnolfini, de Jan Van Eyck, onde podemos ver, ao fundo, em um pequeno espelho, o reflexo do pintor, Alpers comenta que essa imagem especular “duplica a presença do artista como uma testemunha interna”. Como uma espécie de auto-representação do pintor, essa imagem “não nos revela algo sobre a natureza do autor humano”, pois “a presença do artista como testemunha do mundo descrito é mais importante para a pintura do que a sua própria natureza” (Alpers, 1999, p.113). O mundo se apresentaria, nessa representação, como anterior à representação feita pelo pintor, que serve de testemunha e o documenta, e não reivindica para si a criação, no plano da representação, de um novo mundo, de um segundo mundo.
Na pintura italiana inspirada em Alberti temos, por meio da perspectiva, “a construção de proporções harmoniosas no interior da representação em função da distância”, sendo aquilo que a pintura expõe “mensurável em relação àquele que a olha, o espectador” (Arasse, 2004, p.67). Nessas obras “o mundo torna-se então comensurável ao homem”, de tal modo que “o homem possa construir uma representação verdadeira de seu ponto de vista ”(Arasse, 2004, p.67). O mundo que a pintura mostra se acha organizado, assim, em função da posição do espectador.
De modo distinto, e influenciados diretamente pelos estudos do modelo do olho (como produtor mecânico de pinturas) realizados pelo matemático e astrônomo Johannes Kepler e pelo uso da câmara escura, pintores como Vermeer, Gerard Dou, Jan van der Heyden, dentre outros, não parecem principiar suas obras supondo um observador prévio que organize a cena mostrada. E se, como assinala Alpers, no século XVII holandês, “a pintura toma o lugar do olho”, isso significa que o observador não está, na verdade, “em parte alguma”. Nesses quadros seiscentistas holandeses, ao contrário do que se dá na produção pictórica do Renascimento italiano, é possível registrar, então, certo “caráter fragmentário”, assim como a constituição de certos “enquadramentos arbitrários”, o que parece fazer com que essa pintura se mostre capaz de oferecer “à Natureza o poder de reproduzir a si mesma diretamente, sem a ajuda do homem” (Alpers, 1999, p.113).
Tal como nas pinturas holandesas comentadas por Alpers, nos filmes de Akerman as imagens parecem se engendrar sem um observador prévio que as organize. Elas são como testemunhas mudas, registros diretos de uma realidade ‘bruta’, não decupada ou organizada. Pelo aspecto aparentemente arbitrário dessas imagens, pela atenuação da intervenção da diretora, essas imagens parecem ser uma espécie de impressão do tempo presente. Essa sensação de que o momento imprimiu na imagem o seu próprio presente, a sua fugaz aparição, não ocorre porque o momento registrado seja extraordinário, inesquecível, mas, pelo contrário, devido a seu caráter banal, inexpressivo e arbitrário. Suas imagens parecem assim ser muito menos comentários sobre as coisas filmadas do que uma espécie de constatação do estado das coisas. É o ordinário, o caráter banal e, de certo modo, arbitrário do cotidiano, que parece emergir e guiar essas imagens. Talvez possamos estabelecer aqui uma breve aproximação entre os filmes de Akerman e os filmes de Ozu via um comentário de Deleuze presente em A imagem-tempo.
Segundo Deleuze, a importância dos aspectos banais nos filme de Ozu, não fazem do cineasta um “guardião dos valores tradicionais” ou um “reacionário”, mas, pelo contrário, “o maior crítico da vida cotidiana”, já que “do próprio cotidiano ele extrai o intolerável” (Deleuze, 2007, p.29).
Acredito que essa crítica ao cotidiano pela revelação do que nele é intolerável também se dá também nos três filmes aqui comentados de Akerman. A constatação da banalidade do cotidiano ganha certo peso e complexidade nesses filmes em, pelo menos, dois sentidos. Primeiro, pelo caráter, em parte, aleatório dessas imagens, pela falta de um ponto de vista preciso. O caráter aleatório não parece estar somente presente na forma como essas imagens são captadas, mas naquilo mesmo que elas mostram, parecendo assim emanar do próprio cotidiano. O cotidiano é intolerável, porque não mensurável, por não estar de acordo com o ponto de vista de um observador, escapando assim de qualquer apreensão. Não é que tudo no ordinário se equivalha, mas, pelo contrário, por não haverem equivalências possíveis não podem haver também hierarquias, algo que o organize. Já que seus aspectos não têm um valor delimitável, não podemos selecionar o que, no cotidiano, deve ou não deve ser mostrado, o que nele é fundamental, já que sua fundamentação nos escapa. Nesse sentido, é difícil não lembrar de um livro como Cosmos, de Gombrowicz, em particular de trecho no qual um dos personagens comenta:
“Os anos se dissolvem em meses, os meses em dias, os dias em horas, em minutos e em segundos, e os segundos escapam. Não se pode apanhá-los. O que sou eu? Eu sou uma certa quantidade de segundos – que já foram. Resultado: nada. Nada” (Gombrowicz, 1966, p.155)
A seu modo, algo semelhante é o que registram, em filmes bem diversos entre si, Ozu e Akerman. Do plano vertical das hierarquias, passamos assim, nesses casos, ao plano horizontal da acumulação, da descrição minuciosa.
Passo, então, ao segundo motivo, que me parece fazer com que essas imagens portem certo peso do cotidiano. E que está relacionado, é claro, ao primeiro motivo. O caráter não seletivo dessas imagens parece estar ligado a uma impossibilidade daquele que as capta em escolher aquilo que deve ser mostrado. E isso ocorre também para aquele que as vê. Quero dizer com isso que, como Akerman parece estar impossibilitada de escolher entre esse ou aquele aspecto do cotidiano, como sua direção parecer se diluir em meio ao tempo dispersivo das banalidades, nós também, enquanto espectadores dessas imagens, nos achamos como que desorientados em meio a uma quantidade inapreensível de elementos não hierarquizados do cotidiano, e o nosso olhar acaba não se dirigindo a nada preciso, fica somente vagando em meio a tudo aquilo que é mostrado pelo filme. O cotidiano é assim intolerável por sua des-razão, sua imensurabilidade e por sua dispersão.
Talvez possamos pensar que essa não seletividade das imagens, em Akerman, também problematiza uma perspectiva funcional, uma visão que se dirige a certos aspectos da imagem para fins específicos. Essas imagens como que bloqueiam uma visada ‘intencional’ da visão. Desse modo, elas nos levam a uma situação-limite na qual os esquemas “sensório-motores” não podem dar mais conta daquilo que se impõe à nossa visão.
Para Deleuze, essa inibição do esquema sensório-motor, faria com que saíssemos do clichê e chegássemos a ver algo na imagem que, pelo clichê, pode passar despercebido aos nossos olhos. No capítulo Para além da imagem-movimento de A imagem-tempo, há o seguinte comentário a esse respeito:
“Um clichê é uma imagem sensório-motora da coisa. Como diz Bérgson, nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. Mas, se nossos esquemas sensório-motores se bloqueiam ou quebram, então pode aparecer um outro tipo de imagem: uma imagem ótica-sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não tem mais de ser ‘justificada’, como bem ou como mal” (Deleuze, 2007, p.31)..
Acredito que, pelo uso de um tempo estendido, pela não hierarquização dos elementos das imagens, os filmes de Akerman conseguem, de algum modo, fazer com que vejamos aquilo que na imagem não se tornaria visível caso ela estivesse previamente organizada em função do olhar do espectador. É como se saíssemos de uma percepção regulada pela cultura e fossemos em direção a uma percepção ‘bruta’, a um mundo perceptivo ‘amorfo’ que produziria seus próprios recursos perceptuais.
O filme parece constituir assim uma narrativa cinematográfica que se engendra por uma forma de rarefação da figura do narrador. O narrador não seria assim pensado por sua onipresença, mas por uma ausência, como figura que se dispersa e quase desaparece em meio aos registros aleatórios do cotidiano. E são esses mesmos registros, assim como o tempo cotidiano, dilatado por eles, que acabam por se sobrepor às cartas. Nas imagens finais, a voz da mãe (expressa pela voz da cineasta) fica quase inaudível. O ruído da cidade como que abafa a voz. Como se mesmo os acontecimentos relatados de forma epistolar, isto é, à distância, e até as possibilidades de presença mediadas pelas cartas se rarefizessem, se dispersassem, em meio à interferência quase em bruto de outra cidade. Não aquela das cartas, Bruxelas. Mas a outra, Nova York, aquela na qual se registra a ausência da filha/cineasta, e que, por um momento, pela sugestão pouco enfática de um skyline, se deixa capturar meio em bruto, também, por uma câmera que se parece deixar entregue à própria deriva.
ALPERS, Svetlana. The art of Describing.The University Press of Chicago, 1983
ARASSE, Daniel. Histoires de peintures. Paris: Gallimard, 2004
DELEUZE, Gilles. L`image-temps.
Gombrowicz, Witold. Cosmos.
MARGULIES, Ivone. Nothing happens: Chantal Akerman`s hyperrealist every day. Duke University Press, 1996
NICHOLS, Bill. The Voice of Documentary. In: Film Quarterly, 1983
Distopia 07'33''12''' from Coletivo Distopias on Vimeo.
"Vídeo experimental feito a partir da projeção do filme Asas do Desejo de Win Wenders sobre caderno especialmente produzido para o projeto com trechos do livro o Ateliê de Giacometti de Jean Genet e imagens da Praça da Bandeira, São Paulo. Agosto de 2009."
http://www.distopias.org
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